Sessenta minutos de quedas

Sessenta minutos de quedas

Peter Lavratti*

Pela primeira vez, tive o privilégio de acompanhar uma boa parte da programação do Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Contemporânea, evento importante da cidade de Florianópolis (SC) que em 2021 alcançou sua 11ª edição. Inteiramente no formato on-line, permitiu o privilégio, que se dá por uma razão relacionada à própria constituição da iniciativa: o público precisou se organizar para apreciar uma parcela da agenda intensa proposta pela curadoria, lindamente desenhada por Jussara Xavier e Marta César. Com data e hora marcadas, entre os dias 24 e 30 de maio, elas propuseram espetáculos, oficinas, conferências dançadas, mostra de videodança, diálogos, intervenções digitais, homenagens e lançamento de livro. 

Assim, já aponto uma das pérolas da edição, pois a curadoria incorporou o que é inerente a um evento presencial, o momento do acontecimento. Era necessário estar presente! Uma oportunidade que coloca o público em outros modos de operação nesses tempos virtuais em que há um excesso de eventos e informações e, naturalmente, o hábito de deixar para “ver depois”, um comportamento que acaba desvanecendo potências.

          A abertura do Múltipla Dança contou com o espetáculo “Normal” da Cia. Alias, fundada pelo brasileiro Guilherme Botelho em Genebra (Suíça). A obra já havia sido vista em formato presencial no Brasil: no encerramento da Bienal Sesc de Dança de 2019, em Campinas (SP) e no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, em São Paulo. Interessantes as manifestações no chat do Youtube de pessoas que tiveram a experiência de assistir ao trabalho no palco, comentar sobre a sua potência, mesmo na tela. Um indício de que sim, apesar de todas as controvérsias, o espaço da tela é lugar possível e potente de relações de apreciação entre obra e espectador. Embora estejamos vivendo um momento de saturação desse modo remoto, ainda assim é fundamental que a produção artística seja vista, discutida, promova diálogos e nos coloque nesse estado maravilhoso (e, às vezes, difícil) de questionar a própria percepção das coisas vistas e sentidas.

”Normal”, espetáculo da companhia suíça Alias que abriu o 11º Múltipla Dança
Gregory Batardon/Foto Divulgação

A transmissão de “Normal” se inicia: no palco, os seis bailarinos dispostos em grupo coeso, voltados com suas faces para a diagonal, ao fundo, no lado direito, numa posição e intenção corporal que sugere que eles darão um passo à frente. Mas não! Começam sucessivamente os movimentos de queda para trás, embora sustentem o intento daquilo que há à frente dos seus corpos. E é nesse vocabulário de gestos de cair e se levantar que o grupo vai avançando paulatinamente para frente, ocupando o espaço da cena e também, o espaço emocional do espectador. Não é possível ficar indiferente com a proposição de Botelho e não se afetar pelo trabalho entrando em um estado contemplativo. Cada gesto novo incorporado na partitura (sim, pois quedas e recuperações têm nuances, sutilezas, diferentes fontes iniciais do movimento) nos “move” internamente, mexe com a percepção visual, com a cinestesia, no seu lugar potente de provocar e transformar concepções.

          Não pude deixar de lembrar de minha atuação como bailarino no Grupo Corpo, em específico, em “Breu” (2007). Assim como em “Normal”, o espetáculo começa com um grupo de bailarinos dispostos em diagonal no fundo, avançam aos poucos para frente, mas as concepções e poéticas são outras. Em “Normal”, luz, figurino, presença cênica dos intérpretes e ambiente cênico são simples, sem grandes artifícios, mas com um importante e responsável diferencial, pois segundo Botelho, há um material no chão que ajuda a absorver o impacto dos corpos. Além disso, a partitura coreográfica aposta na força do grupo “dançando junto”, com apenas leves e breves variações sutis no tempo, um olhar, a somatória de gestos ou um movimento diferente específico daquele intérprete. Já em “Breu”, há um cenário preto de placas e linóleo reflexivo construído que simula espelhos, dando a impressão de que o grupo de 20 bailarinos é uma multidão. O figurino gráfico de Freusa Zechmeister em preto e branco segue na linha de seus trabalhos anteriores, nos quais a malha colante evidencia os corpos dos bailarinos. A luz de Paulo Pederneiras dá diferentes ambiências à cena, recorta e se modifica permanentemente durante a peça. O vocabulário gestual de Rodrigo Pederneiras consiste em células coreográficas comuns a todos os bailarinos, porém organizadas em blocos. Cada grupo realiza essas células em ordens diferentes, dando a sensação de uma cena verborrágica. Além disso, o vocabulário gestual das quedas de Pederneiras é seco, duro e direto para o chão e cabe a cada intérprete descobrir a forma mais “saudável” de agenciar o próprio corpo nesse contexto de precisão entre o movimento, o vigor físico e a conexão da coreografia com a trilha sonora composta pelo Lenine. A cena de abertura de “Breu” não dura 60 minutos, talvez perto de cinco minutos.

”Breu”, trabalho do Grupo Corpo, dirigido por Rodrigo Pederneiras
José Luis Pederneiras/Foto Divulgação

Afinal, são trabalhos de épocas diferentes, concepções outras. Botelho ativou minha memória na carne! Trabalhar na montagem, ensaiar e apresentar “Breu” foi um momento difícil da carreira, pois após essa experiência descobri uma lesão séria no quadril que me obriga a conviver diariamente com uma dor e uma limitação, por vezes, insuportável. Na época da lesão, a cirurgia foi descartada porque essa não estava funcionando bem para alguns casos (o do tenista Gustavo Kuerten, por exemplo). Além disso, somam-se questões hereditárias, tabagismo e dietas mal administradas. Assistir aos 60 minutos de quedas de “Normal” leva a pensar muito na repetição. Uma amiga, apropriando-se de Freud, diz com frequência que “repetir é reelaborar”. Quando Botelho escolhe um plano de composição, explorando apenas “um” viés de cair e levantar, sua dramaturgia diz que essa evolução opera de muitas maneiras. E essa é uma das maravilhas do trabalho, porque nesse tempo de alta velocidade, estudos já indicam que uma pessoa tem capacidade de atenção visual na tela de apenas oito segundos para, em seguida, passar para outro conteúdo. Poder contemplar um espetáculo por um longo período de tempo, aguça a percepção sobre todas nuances possíveis em um “único” gesto, esgarça a apreciação nos detalhes. E, então, percebe-se que de um gesto único, múltiplos movimentos e sentidos vão se transformando dentro da gente. Avesso à ação de debate pós-espetáculo, porque talvez egoisticamente, prezo por ficar “degustando” de forma às vezes solitária, às vezes na conversa entre amigos sobre as percepções advindas da obra. O “tempo” interno de organização da experiência sempre me pareceu fundamental. No entanto, no caso de “Normal” da Cia. Alias, continuei on-line e acompanhei a fala de Guilherme Botelho mediada por Marta Cesar. Saber das intenções do artista, bem como observar as reações do público presente no chat, foi sensacional. Ponto para o festival que quebrou meu hábito e transformou minha concepção.

          Tanto as quedas de Botelho quanto as de Pederneiras fazem refletir sobre assuntos de essencial importância: o primeiro deles refere-se à uma mudança de comportamento e de pensamento sobre as formas de preparação do corpo para um espetáculo. Muito já se avançou sobre isso, mas é fundamental que os bailarinos em formação atentem para as diversas abordagens somáticas como elementos de seus rituais corporais diários, uma compreensão que deveria circular nas escolas de dança. 

 “Normal” aborda a resiliência em espetáculo dirigido pelo brasileiro Guilherme Botelho
 Gregory Batardon/Foto Divulgação

Outro assunto, se refere à organização dos artistas da dança com o Legislativo, em busca de soluções possíveis para a dignidade do profissional em transição ou em fim de carreira. Há alguns projetos sobre a questão da aposentadoria especial para bailarinos que estão em passos lentos na Câmara dos Deputados. É preciso avançar nas propostas legislativas que regulamentam a profissão, um assunto amplo e complexo que merece outros textos e aponta para a necessidade urgente de consolidação da atividade que, comparada a outras categorias, carece de marcos legais específicos. Muitos alunos talentosos desistiram da carreira por essas razões, artistas incríveis escolheram outros caminhos e deixaram de criar pelas mesmas razões. É triste! Enquanto isso, a produção de dança vai “invalidando” cada vez mais e mais profissionais por sua dedicação integral e irrestrita. Não se trata apenas sobre invalidez, mas sobre dignidade! Afinal, um bailarino hoje pode, sob condução de um bom advogado, conseguir a aposentadoria por incapacidade física. E quando o desejo é continuar atuando, como fica o lado emocional deste artista?

             Assunto delicado, porque envolve os bastidores das instituições e porque os próprios bailarinos dificilmente falam sobre a questão. Precisamos retomar esses e outros diálogos com os artistas, sindicatos, universidades, festivais, companhias públicas e privadas, em articulação com os representantes políticos nos órgãos competentes. Precisamos também estudar os programas de apoio aos bailarinos, existentes em outros países, para aproximar contextos e realidades. Em sua conferência dançada, Regina Advento comentou brevemente o assunto, pois na Alemanha há programas de apoio aos artistas que permitem agenciar a transição de carreira. Quem sabe assim, quando for o momento de “queda” dessas novas gerações, ela não seja tão seca e dura como hoje? Ou que, ao menos, possa ser algo mais controlado, como aquilo visto nas sutis mudanças da composição de Botelho, em que os bailarinos mudam a disposição cênica da diagonal para se estabelecerem de frente ao público, posição em que executam as quedas, ao invés de para trás, para a direita e para a esquerda sucessiva e controladamente. Quem sabe assim, possamos dar esse passo à frente com solidez como categoria artística? Curioso, no 11º Múltipla Dança, o fato de que boa parte da programação internacional apresentou o trabalho de brasileiros vivendo no exterior. 

               Sim, falar sobre a consolidação da profissão é extremamente amplo, pois passa por diferentes assuntos e instâncias, mas esses buracos legais são abismos e devem ser reestruturados. Sem negligenciar os avanços das pesquisas, ações e projetos que circulam no Brasil, muito menos desqualificar o potencial das micropolíticas, o objetivo está em focalizar na urgência de que todo esse conhecimento consiga operar em um campo mais expandido, aproveitando o momento da alta velocidade e a possibilidade de amplo acesso às pessoas por meio das redes sociais. Todos esses assuntos coexistem e estão intrinsecamente relacionados à possibilidade de construção de um ambiente de trabalho mais profícuo e potente. Nesse sentido, recordar, NÃO repetir e reelaborar, contrariando Freud, parece-me uma alternativa urgente.


* Artista da dança, bacharel em artes plásticas pela Escola Guignard – Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e pós-graduando em linguagens e poéticas da dança na Universidade Regional de Blumenau (Furb). Foi bailarino da Cia. de Dança Palácio das Artes e Grupo Corpo (BH), Cisne Negro e Raça Cia. de Dança (SP). Atua como professor de dança, coreógrafo e artista plástico. 

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