Educador, pensador e militante 

Marco Aurelio da Cruz Souza recebe tributo no 11º Múltipla Dança

Néri Pedroso*

Um professor vocacionado que também é um comunicador com carisma. Quando fala, em aula ou em eventos de sua área de atuação, os olhos brilham, revelam um homem dotado de paixão pelo que faz. Marco Aurelio da Cruz Souza, coordenador do curso de licenciatura em dança da Universidade Regional de Blumenau (Furb), o primeiro nesta área em Santa Catarina, foi o homenageado do 11º Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Contemporânea realizado inteiramente on-line entre 24 e 30 de maio de 2021, com 37 convidados e uma série de ações. O desempenho e o envolvimento deste pesquisador, também doutor em motricidade humana – especialidade em dança e mestre em performance artística-dança, se projetam para além de Santa Catarina e chamam a atenção.

Como alguém nascido em Blumenau, em 1977, e morador de Gaspar, pequeno município do Vale do Itajaí hoje com cerca de 70 mil habitantes, faz uma opção pela arte? Marco Aurelio ainda vive no lugar da infância, “cidade onde um menino fazer aula de dança não era bem recebido”, conta ele. 

Especializado em dança educacional, integrante de diferentes grupos de pesquisa, como Arte e Estética na Educação (Capes-CNPQ) e o projeto Folk Covid, coordenador do projeto de extensão Grupo de Danças da Furb, é autor e organizador de livros, bem como de inúmeros artigos científicos na área da dança, formação e experiência estética, e formação de professores. Ativista, atualmente integra o conselho científico e fiscal da Associação Nacional dos Pesquisadores em Dança (Anda) e atua como vice-presidente da Associação Profissional de Dança do Estado de Santa Catarina (Aprodança). 

Entre os trabalhos coreográficos premiados, estão “Respeito: Sou Mulher, Sou Negra, Sou Brasileira”, “Saudação a Iemanjá”, Ye “Ye Iberi Dshum”, “Singkill”, “África Tribal”, “Cúmbia, Ritmo Colombiano” e “Oktoberfest, Jeden Tag ist Ein Fest”. Também assina a direção coreográfica dos espetáculos “As Avessas”, “Nos Tempos da Brilhantina” e “Meia-Noite em Paris”, realizados pelos cursos de dança, teatro, música e artes visuais da Furb. Atua como jurado, cursista e palestrante em eventos de dança em Santa Catarina e no Brasil. Consultor do currículo do novo ensino médio de Santa Catarina (2020) e membro do coletivo de artes para criação dos insumos para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD/2019) do Ministério da Educação (MEC).

Nesta conversa, Marco Aurelio compartilha um pouco de sua vida, de seu jeito de ser e pensar. “Sempre fui uma pessoa muito determinada e com foco para conquistar o que eu queria; desde pequeno. Eu colocava uma coisa na cabeça e enquanto não conseguia, não desistia.” Deu no que deu. Uma imensidão – um educador, um pensador, um militante em favor da dança contemporânea de Santa Catarina e do Brasil. Ele reflete também sobre o Múltipla Dança, sobre o reconhecimento de sua trajetória, pensa a própria atuação e a importância da arte em tempos sombrios. “Ver a arte na universidade me enche de esperança, pois além de possibilitar uma formação mais sensível, enaltece o conhecimento, mesmo que ainda não esteja em pé de igualdade com as demais áreas”, diz ele que recebeu o tributo no dia 25 de maio, quando também participou de uma live pelo Instagram para dialogar e partilhar experiências no universo de sua atuação.

Marco Aurelio conquista reconhecimento pela contribuição dada como pesquisador do universo da dança
Foto Divulgação

Quem é Marco Aurelio? 

Marco Aurelio da Cruz Souza – Nossa, pergunta difícil (risos). Acho que poderia dizer que sou uma pessoa de garra e obstinada. É uma boa definição. Olho para a minha história de vida pessoal e profissional que de certa forma sempre estiveram atreladas uma na outra, e vejo que sempre fui uma pessoa muito determinada e com foco para conquistar o que eu queria; desde pequeno. Eu colocava uma coisa na cabeça e enquanto não conseguia, não desistia. Sou assim até hoje. Se não tivesse sido assim, não teria me envolvido com a dança e tornado isso minha profissão. Lembro que eu adorava tirar notas boas na escola e que, aos dez anos, fui sozinho na única escola particular de cidade e fiz minha matrícula, pois eu queria mais cobranças. Depois comuniquei a meus pais que eles tinham que ir pagar e pegar a lista de materiais (risos). E assim foi, em cada etapa da vida, definia o objetivo e ia por ele (na área acadêmica: graduação, especialização, mestrado e doutorado; na área profissional; viagens, etc.)

Como um menino nascido em Gaspar, faz uma escolha pela dança? 

Marco Aurelio – Aconteceu, pois, tinha que acontecer, mas minha irmã Luciane (quatro anos mais velha que eu) foi a grande responsável pelo meu envolvimento com a dança.  Lembro dela dançando lindamente e com grande paixão em cada movimento. Ela se tornou professora de dança aos 13 anos e ministrava aulas nas cidades da redondeza (Brusque, Blumenau, Timbó e Pomerode). Quando as aulas eram em Gaspar, assistia quase todas, bem como das outras professoras contratadas que vinham de Blumenau trabalhar na academia dela. Assistia, pois, para uma cidade pequena como Gaspar, um menino fazer aula de dança não era bem recebido. Certo dia, durante um dos ensaios para o tão esperado espetáculo de fim de ano, uma das alunas de um grupo intermediário, que também era modelo, foi chamada para um trabalho em São Paulo e não poderia participar do evento em Gaspar. Minha irmã ficou meio desesperada pois teria de reorganizar todo o trabalho coreográfico, e só faltava uma semana para o espetáculo. Disse a ela e ao grupo que eu poderia substituir a menina, mesmo sem nunca ter feito nenhuma aula, mas como assistia a todas elas, eu sabia a coreografia toda. Foi engraçado, ensaiamos todos os dias para eu entrar na coreografia. Meu corpo não respondia tecnicamente aos movimentos, mas eles saiam no tempo certo e super coordenado. Penso que era porque eu jogava vôlei e praticava ginástica olímpica. Tinha a coordenação motora bem desenvolvida. Aí não parei mais, entrei no Grupo de Danças Alemãs da Furb, na master academia para aulas de jazz, dança de rua e ginástica aeróbica, o hit do momento na época, comecei a fazer cursos em eventos de dança. 

Em que momento percebe sua vocação profissional? Como envereda para a dança?

Marco Aurelio – Tudo nesse período, no final do ensino médio. Depois da apresentação no espetáculo da academia de minha irmã, fui chamado para trabalhar na própria escola particular em que estudava. No terceirão de manhã e, à tarde, dava aulas para as crianças pequenas de até dez anos. Aí aconteceu a escolha por cursar educação física, uma vez que em Santa Catarina não tínhamos curso superior em dança, e era o que eu queria fazer profissionalmente, pois já estava ganhando dinheiro com isso. Trabalhava sem formação alguma. Só curiosidade mesmo. Eu não parava, passei a fazer muitos cursos de dança e educação. Saia de casa às 6 da manhã para estudar e raramente chegava antes das 22 horas, por conta de tudo o que eu fazia (vôlei, ginástica, danças, aula de violão, trabalho). Sempre foi assim. E não é diferente hoje, só que com outras atribuições. Sempre soube que queria ser professor e coreógrafo, nunca tive vontade de ser bailarino/artista da dança.

Marco Aurelio recebe em 2015, em Florianópolis, o 6º Prêmio Desterro conquistado com o espetáculo “Singkil”, do Grupo de Dança do Departamento de Cultura de Gaspar

O que é dominante no percurso e no fazer artístico: a criação propriamente dita, a educação, o pensador/pesquisador? O que mais mobiliza?

Marco Aurelio – Em todo processo formativo em dança, realizado de forma consciente, o ato educativo se faz presente, e para ser um bom professor necessariamente o ato investigativo será acessado.

Como recebe o tributo do 11º Múltipla Dança? Como vê o fato de estar num rol de nomes expressivos de Santa Catarina, como Alejandro Ahmed, que recebeu a homenagem em 2013, Diana Gilardenghi, em 2015, Ana Luiza Ciscato, em 2016 e Ida Mara Freire, em 2017?

Marco Aurelio – É incrível. Fiquei muito feliz quando Jussara Xavier me comunicou. São profissionais que admiro muito por suas trajetórias artísticas. Nem sei se mereço tal honraria, mas recebo com o coração transbordando de alegria. É o reconhecimento de anos de luta pela dança. Luta que passa por várias instâncias: ultrapassar o preconceito de meninos na dança, falta de valorização da área, busca pela profissionalização, entendimento da dança como área de  conhecimento, participação de associação de classe em minha cidade para dar oportunidades a crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, aulas de qualidade e de forma gratuita, participação de eventos, criação de espaços para que a dança tivesse maior visibilidade no Vale do Itajaí, para além dos espaços tradicionais como o teatro, e mais recentemente a criação do curso de licenciatura em dança na Furb, no qual estou como professor e coordenador, e consultoria na criação do currículo do novo ensino médio de Santa Catarina.

Como avalia o Múltipla Dança?

Marco Aurelio – É um grande evento. Ocupa um lugar importante no cenário da dança no Sul do Brasil por apresentar perspectivas profissionais para a área da dança, possibilita a apreciação estética e artística de trabalhos de companhias e artistas profissionais da dança dos contextos nacional e internacional, abre espaço para o diálogo entre artistas, pesquisadores, professores e o público, bem como oferta de oficinas, palestras, formação de plateia e outras ações que compõem a programação, além de um olhar atento para a dança catarinense.

Qual o papel da arte num tempo disruptivo? A arte serve para o que diante de tanto sofrimento?

Marco Aurelio – A arte assumiu já diferentes papéis e funções em muitos contextos e tempos. Penso que nesse momento de tanto sofrimento por conta da pandemia e atuações desastrosas de nossos governantes, a arte acaba por tocar num lugar que lhe é próprio, mas que parece ser melhor entendido no agora, que é a sensibilidade, possibilitando além da fruição estética, momentos de reflexão e reação.

O que é dominante no percurso e no fazer artístico: a criação propriamente dita, a educação, o pensador/pesquisador? O que mais mobiliza?

Marco Aurelio – Em todo processo formativo em dança, realizado de forma consciente, o ato educativo se faz presente, e para ser um bom professor necessariamente o ato investigativo será acessado.

Como tem sido a sua experiência como coordenador do curso de licenciatura em dança na Furb? O que é mais difícil nesta atuação, tendo em vista o caráter inédito de sua criação no Estado? 

Marco Aurelio – Encaro como mais um grande desafio, mas que me dá muito orgulho em poder fazer parte. Os desafios são inúmeros e constantes. O curso é pago, e perante a crise econômica e política que temos atravessado nos últimos anos, período em que o curso foi criado, acaba dificultando a captação de novos alunos e manutenção dos que temos, mesmo com a oportunidade de muitas bolsas pela universidade e principalmente do governo do Estado; a situação de toda equipe de professores (que é incrível) ser substituto, ou seja, não ter estabilidade, a não regulamentação da profissão da dança, hoje qualquer pessoa sem formação pode atuar como professor, a predominância da formação da área da educação física, o não entendimento da dança como arte…mercado de trabalho, desvalorização da profissão. Mas, ao mesmo tempo, com todas as dificuldades, os resultados com os estudantes nos enchem de alegria. Temos conseguido no Vale do Itajaí ampliar o diálogo com as prefeituras e conscientizá-los na criação de concursos públicos específicos para o professor de dança, e ainda, possibilitar que os licenciados em dança possam assumir as vagas de professor de arte nas escolas, conforme o Parecer CNE n° 22/2005 e Lei Federal 13.278/2016. Este ano conseguimos ampliar para as escolas estaduais também que já recebem nossos estudantes. É um grande passo.

Aula de danças populares na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, em Joinville 
Foto Divulgação

Nem todo o artista percebe a importância de sua participação e representatividade junto as entidades de classe. Poderia falar um pouco da sua atuação na Anda e Aprodança? É possível ensinar na escola a questão da resistência, da luta e de uma atuação mais política no campo da arte e da cultura?

Marco Aurelio – Penso que a escola de educação básica é o lugar próprio para o desenvolvimento do pensamento crítico, político e democrático, de ampliação da visão de mundo e de possibilitar experiências que auxiliem na concretização da cidadania. Temos uma longa caminhada a seguir…Quanto a participação da Anda e Aprodança tenho aprendido muito. Este lugar de aprendiz sempre me fascinou. Essas associações de abrangências nacional e estadual exercem papel fundamental na discussão para construção de políticas públicas, na luta em prol da dança em diferentes contextos formais e não-formais de ensino, de estar atento aos desmandos de nossos governantes para poder agir prontamente, de nos instigar a sermos corpos políticos, que entendam seus deveres e direitos e que lutem por eles.

Impressiona o arco de sua atuação como pesquisador que abrange da dança popular à dança contemporânea. A lista dos livros de sua autoria indica ampla envergadura de temas. É possível explicar a partir de seus estudos porque, às vezes, no circuito de dança alguns artistas são vitimados por preconceito, como se fosse possível estabelecer critério de valor entre dança contemporânea, dança popular, dança de salão, etc.? É possível escapar destas hierarquias e de injustas invisibilidades?

Marco Aurelio – É possível se realmente acreditarmos no que fazemos, na importância de todas as danças e em nossas lutas. A meu ver, a dança em Santa Catarina, apesar de toda sua diversidade, basicamente se constituiu nos festivais amadores de dança, onde as escolas apresentam seus trabalhos coreográficos para serem avaliados. Tem claramente um modelo a ser seguido, e acaba que a dança passa a ser reconhecida por este formato. A hierarquia da dança clássica se faz muito presente. Lembro quando eu participei como bailarino do Grupo de Danças Alemãs da Furb em festivais de dança no Estado e mesmo com a primeira colocação, recebíamos uma breve avaliação descritiva que, além dos elogios à nossa presença cênica e ao desenvolvimento da proposta coreográfica, destacava: melhorar as linhas, esticar as pontas de pés, cuidar com a cabeça nos giros. Aquilo nos era muito engraçado e nos divertíamos ao ler, pois queriam que nós, grupo de danças populares, assumíssemos características da dança clássica. Ainda hoje escuto de muitos professores de dança e bailarinos que falam que a dança clássica é a base da dança. E aí que é a grande sacada. Conseguir circular entre distintas formas de dança, entender os diferentes modos de fazer e pensar dança, de criar diálogos, ampliava a possibilidade investigativa do ato compositivo artístico e acadêmico. Isso sempre me encantou, e resulta nessa diversidade de minha atuação. Desta forma, passei a valorizar os contextos em que as danças acontecem para além dos festivais competitivos. Sejam eles nos terreiros, nos quilombos, nas discotecas, nas ruas, nas cidades, na natureza, etc.

Você é pesquisador convidado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) no projeto Folk Covid. No que consiste?

Marco Aurelio – O Folk Covid é um projeto de pesquisa da UFPel coordenado pelos professores doutores Carmen Anita Hoffmann e Thiago da Silva de Amorim Jesus, que são pesquisadores amigos da área das danças populares. O estudo busca mapear, analisar e refletir sobre os impactos da pandemia do covid-19 em contextos folclóricos, especialmente no que se refere à realização e/ou adaptação deles, sua continuidade e/ou postergamento, bem como refletir acerca dos possíveis impactos sofridos e a projeção de desdobramentos para o futuro. Estou adorando poder fazer parte deste coletivo

Pautas emergentes, novas plataformas discursivas, a revitalização dos movimentos femininos e decoloniais. Como tudo isso opera na dança de Santa Catarina e do Brasil? 

Marco Aurelio – Acredito que ainda de forma muito tímida, estas pautas começam a ocupar espaço nos currículos de cursos superiores de dança e teatro, nos quais os processos compositivos que valorizam o trabalho corporal passam a dialogar com conhecimentos necessários à formação do professor e que são garantidos por força de lei como: direitos humanos, meio ambiente, cultura afro-brasileira, africana, indígena. Metodologias e pensamento decoloniais passam a ser mais valorizadas nas aulas, os corpos e suas subjetividades ganham centralidade nos processos. Ver a arte na universidade me enche de esperança, pois além de possibilitar uma formação mais sensível, enaltece esta área de conhecimento, mesmo que ainda não esteja em pé de igualdade com as demais áreas. Poderia dizer que alguns coletivos que trabalham com a dança contemporânea muitas vezes desenvolvem seus trabalhos discutindo as pautas urgentes. Obviamente que nos espaços não-formais, isso ainda está muito distante, pois os modelos metodológicos do Norte ainda são predominantes na forma de ensinar dança.

*Jornalista, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)