Na busca da palavra que dança

(…) a dança é uma arte que deriva da vida mesma, 

pois não é mais do que a ação em conjunto do corpo humano. 

Porém uma ação transferida para o mundo, 

para uma espécie de espaço-tempo, 

que já não é totalmente o mesmo da vida prática (…) 

Paul Valéry

Nora Silva*

Descobrir a enigmática morada das palavras certeiras se desvela como um grande desafio, porém a busca por palavras que dancem é ainda maior. Ao fechar os olhos a mente se apresenta com um papel em branco, onde a narração se transforme em movimento e surge: uma mulher, a pele tem a tonalidade do café misturado com uns pinguinhos de leite como o cabelo castanho encaracolado que dá passo às novas e brancas propostas dos anos. Os olhos marrons precisam da intervenção dos óculos para ver, a boca com lábios carnudos deixa aparecer dentes brancos e grandes.

O corpo? Ah, o corpo! Ele se distribui em escassos 1, 58 metros, onde a dança é uma bela lembrança escondida debaixo desse contorno arredondado. Essa mulher é real ou será aquela criada na sua mente, quais as escolhas ao descrever, quais os pontos cegos na observação, o que é real?

Dentro deste mundo às vezes distópico, às vezes criador de oportunidades, o encanto pelo aparecimento de um espaço gerador de conhecimento permite o reencontro com velhos desejos e mantém em vigor o pensamento de que tudo está em constante movimento e mudança.

Lilian Vilela ministrou oficina de audiodescrição no 11º Múltipla Dança, 2021
Foto: Divulgação

Fazer uma autodescrição foi o convite da professora e audiodescritora Lilian Vilela na oficina “Dança em Palavras: Experiências com Audiodescrição”, no 11º Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Contemporânea, neste pandêmico 2021.

“A audiodescrição é uma atividade de mediação linguística, uma modalidade intersemiótica, que transforma o visual em verbal, abrindo possibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para a inclusão cultural, social e escolar. A audiodescrição é um recurso de acessibilidade que amplia o entendimento das pessoas com deficiência visual em eventos culturais, gravados ou a vivo, como peças de teatro, programas de TV, exposições, mostras, musicais, óperas, desfiles, espetáculos de dança, eventos turísticos, esportivos, pedagógicos e científicos tais como aulas, seminários, congressos, palestras, feiras e outros, por meio de informação sonora”, segundo a definição da audiodescritora e formadora de audiodescritores, criadora da empresa Ver com Palavras, Lívia Motta.

Porém, como veem a dança os cegos, como ver os movimentos, as cores, como dar conta do espaço e tempo por onde a dança transita? Inúmeras questões disparam: e se todos pudéssemos enxergar sem os olhos, dançar nos corpos dos outros, entender que ser cego não é uma limitação senão um convite para novas experiências, para abrir todos os sentidos?

Compromisso inclusivo: aprendizagem em torno de audiodescrição para espetáculos de dança
Captura de tela/Foto: Divulgação

Na oficina de Lilian Vilela, a descoberta que as cores vibram, tem gosto e infinitos estados, por vezes intransitados por quem têm a visão limitada aos olhos. Se ampliássemos a sensibilidade poderíamos ver “a cor passarinho das flores” (extraído e adaptado de “Los colores de las flores”, 2010), ou sentir o cheirinho da cor vermelho tomate ou perceber o som do vermelho daquela goiaba madura que escorrega da boca do bailarino mineiro Oscar Capucho, que também é a nossa boca.

Como uma nova linguagem, a audiodescrição aparece na dança quase como uma provocação para valorar, entender e aceitar que apreciar um espetáculo artístico vai além dos olhos. Quantas vezes, você vidente, assistiu algo e não conseguiu enxergar a arte que nele aparecia? 

A dança talvez se diferencie das outras expressões artísticas porque seu produto não é tangível, é impossível levar para casa o objeto por ela produzido. Única e irreplicável, só pode ser apreciada de forma íntegra no exato momento da representação.

O bailarino, o coreógrafo e todos os envolvidos no processo criativo são sujeitos com capacidade para aprender e apreender o mundo circundante; portanto, nesse universo se encontra o público que retém a mesma capacidade para mudar o espaço enquanto se modifica a si mesmo. O público que comparece na sala para desfrutar um espetáculo de dança acompanhado com audiodescrição altera a dinâmica da obra permitindo que o fluxo da comunicação se renove.

Na tradução das duas linguagens pertencentes a sistemas diferentes, nasce a dança que fala, as palavras que dançam e fazem dançar um espectador presente com todos os seus sentidos que pressentem e criam uma nova identidade para a dança.

As artes nas quais o corpo se interpõe de maneira tão presente, como a dança, devem ser repensadas em termos de transfigurações inclusivas, que pedem novas concepções do fazer, criar e representar. É necessário atender as subjetividades que habitam no corpo do indivíduo e entendê-lo também como um corpo dançante capaz de interagir com o outro no seu espaço e tempo.

A partir da premissa – pensamos como nos movemos e nos movemos de modo similar a como pensamos – será que é possível flexibilizar os pensamentos tanto quanto os músculos? Se a dança vai construindo espaço e tempo ao se desenvolver, constrói também estruturas de pensamento?

O dicionário define inclusão como a integração absoluta de pessoas que têm necessidades especiais ou específicas numa sociedade. Definir políticas inclusivas e sua implementação transformam um projeto em realidade social. Por isso, é necessário ressignificar o modo de representar a dança, identificar e ampliar o seu espectro magnético para torná-la mais inclusiva.

A audiodescrição demanda engajamento com o destinatário da narração, e com a obra e seus integrantes. Do mesmo modo, requer plena concentração e textos descritivos sem interpretações e/ou julgamento de valor.

O audiodescritor está em constante processo de aprendizado, é um facilitador de desenvolvimento do campo do imaginário. Através de seu relato vai provocando climas e clímax que permite ao público cego se tornar um espectador-criador ao desenhar a sua própria versão da obra. Essa será a maior instigação deixada pela oficina. Estabelecer, coreografar palavras para que a dança possa ser lida (ouvida) de frente para trás, de cima para baixo e vice-versa, mas acima de tudo de dentro para fora.

*Graduada em dança clássica e dança contemporânea, Universidad Nacional de las Artes, Argentina; graduada em expressão corporal-dança, Universidad Nacional de las Artes, Argentina e ex-intérprete de dança contemporânea e dança teatro em grupos independentes na Argentina.